segunda-feira, setembro 21, 2009

CRISE AMBIENTAL E ECOSSOCIALISMO

Paccelli José Maracci Zahler

Na Semana da Pátria de 2009, o governo brasileiro anunciou a compra de 36 aviões de combate Rafale franceses para uso da Força Aérea Brasileira ao custo estimado de 4 bilhões de dólares.
Particularmente, não tenho nada contra a modernização das nossas Forças Armadas, uma vez que o armamento utilizado para patrulhar e proteger as nossas fronteiras é da década de 1970. Além disso, com a descoberta de reservas de petróleo em águas territoriais e a cobiça internacional por fontes de energia, o país deve estar preparado para dissuadir qualquer tentativa de tomada das nossas riquezas minerais por parte de outras nações.
Por outro lado, existem questões ambientais, questões de saneamento básico e de saúde pública que necessitam da nossa atenção.
O artigo intitulado “O peso do homem na Amazônia”, Revista VEJA, Especial Amazônia, de setembro de 2009, traz alguns números preocupantes. Vejamos: na Região Norte somente 9,7 % dos domicílios são atendidos pela rede de esgoto, enquanto a média nacional é de 51 %; a cidade de Belém lança nos rios e igarapés 92 milhões de metros cúbicos de esgoto não tratado por ano.
Com relação à saúde pública, a tuberculose chega em média a 46 casos por 100 mil habitantes, 20 % acima da média nacional; a hanseníase chega a 69,4 casos para cada 100 mil habitantes, enquanto a média nacional é de 26,2 casos por 100 mil habitantes.
No que tange à desnutrição em crianças em idade escolar, em Manaus a taxa é de 10 %; no interior do Estado do Amazonas, de 23 %; e nas comunidades às margens do Rio Negro chega a 35 %. A média nacional é de 7 %.
Desmata-se, em média, 50 km2 de floresta por dia, o que significa um total de 370 mil km2 desmatados na Região Amazônica nos últimos 20 anos.
Deixando a Região Norte de lado e vindo para o Sul, verificamos um aumento da criminalidade, da insegurança, dos problemas psiquiátricos decorrentes do estresse, das licenças médicas por lesões por esforço repetitivo (LER), pois as atividades laborais são incompatíveis com a natureza humana, somados à poluição por emissões de gases das fábricas, dos automóveis, da poluição visual e sonora, do acúmulo de lixo nas esquinas, dos moradores de rua, do consumo de drogas.
Quem já viveu algumas décadas percebe que a vida está desequilibrada e que as pessoas andam com os nervos à flor da pele.
Recentemente, veio a notícia de que um açougueiro seguira e degolara uma senhora porque ela havia pisado no seu pé, embora tenha pedido desculpas.
Há alguns anos, um médico esquartejou sua namorada porque se sentia incomodado com a presença dela no seu consultório.
Diante disso, há uma voz no peito de cada ente humano clamando por uma mudança na sociedade.
Não é possível que, diante de tantos problemas ambientais e de saúde ocasionados pelo atual sistema de trabalho e de produção se insista em investir na criação de “necessidades desnecessárias”.
Há que se perguntar: Para quê tantos carros novos que usam combustíveis derivados do petróleo se o mundo caminha para a redução dos gases que causam o efeito estufa? Para quê tanta variedade de telefones sendo lançados mensalmente com tanta tecnologia? Para quê tanta informação e propaganda inúteis e tanto investimento na imagem e no marketing pessoal, na indústria da vaidade?
É duro pensar que, mesmo com os anunciados recordes de produção agrícola, existam pessoas desnutridas ou morrendo de fome. Além disso, a temperatura do planeta está aumentando em função da ação predatória do homem nos ecossistemas e a tendência é que as perdas na agricultura passem a ser mais freqüentes.
Em matéria do Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 17.set.2009, o Prof. Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, do Departamento de Ciência do Solo da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz” – USP, diz que “os atuais 26 milhões de hectares de culturas que utilizam o plantio direto em todo o País são responsáveis pelo seqüestro de pelo menos 13 milhões de toneladas de CO2 ao ano”. Por outro lado, a agricultura responde hoje por cerca de 30 % das emissões de poluentes do Brasil e tem sido apontada como uma vilã do meio ambiente, embora exista tecnologia para minimizar o impacto ambiental das culturas.
Segundo o Programa Mundial de Alimentação da Organização das Nações Unidas (Jornal CORREIO BRAZILIENSE, edição de 17.set.2009), no ano de 2009, 87 milhões de pessoas passaram à condição de famintas em 2009 e a fome já ameaça 1,02 bilhão de pessoas em todo o planeta; e sete países concentram 65 % dos famintos: Índia, China, República Democrática do Congo, Bangladesh, Indonésia, Paquistão e Etiópia. Por outro lado, o Quênia, a Guatemala e Bangladesh representam os maiores desafios.
Não seria mais racional encontrar alternativas para a reciclagem dos resíduos que as indústrias e as cidades produzem antes de pensar em novidades tecnológicas cuja função é somente estimular o consumismo e gerar lucro?
Não seria importante que, concomitantemente com a compra de armas para equipar as Forças Armadas, destinar recursos para a saúde, para a educação e para o desenvolvimento sustentável?
Infelizmente, os governos medem o desenvolvimento de um país pelas estatísticas, pelo lucro obtido por suas indústrias e empresas, sem se preocuparem com o bem-estar, com a ergonomia, com as condições de vida dos trabalhadores que, nestes casos, são tratados como peças da linha de produção, podendo ser substituídos, descartados, reciclados ou repostos, dependendo dos humores das bolsas de valores. Por outro lado, isso parece estar mudando porque, em matéria do Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 17.set.2009, o presidente francês Nicolas Sarkozy sugeriu a adoção de novos indicadores de desempenho econômico propostos por uma comissão de economistas presidida por Joseph Stiglitz, americano, prêmio Nobel de Economia. Segundo a comissão, no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) seria considerado o bem-estar dos cidadãos e a sustentabilidade da economia e dos recursos naturais de um país.
Segundo Batista (2009), o sistema capitalista, estando a serviço de uma pequena elite mundial, busca se apropriar da vida por meio dos mecanismos de produção, reprodução, consumo, opressão e alienação.
Isso vem ao encontro da análise da sociedade feita por Foucault (citado por Muchail, 2009) de que vivemos atualmente em uma “sociedade disciplinar” na qual a “disciplina” envolve certos traços que, conjugados e complementares, garantem o seu funcionamento, qual sejam: a organização do “espaço” onde se distribuem os indivíduos; o controle do “tempo”; e a “vigilância ininterrupta”; além do “registro”, ou seja, da anotação do que é continuamente vigiado. Dessa maneira, são criadas condições para a construção de saberes a serem reconhecíveis como verdadeiros, em outras palavras, ocorre uma “produção de verdades”, onde os cidadãos precisam ser enquadrados (“normalizados”).
Realmente, como cidadãos nascidos, criados, educados e inseridos no sistema de produção capitalista aprendemos e achamos normais algumas “verdades” que são passadas de geração a geração.
Jaspers (2008) faz uma análise interessante do posicionamento do homem frente à profusão de informações que chegam diariamente das mais diversas fontes e que acabam promovendo sua alienação. Diz este autor:
Vendo-nos à mercê de fatos políticos e econômicos sobre os quais julgamos não ter a menor influência, sentimo-nos tentados a refugiar-nos em uma existência apolítica. Contudo, aqueles fatos são manipulados por homens. Os homens podem refletir, conhecer, alterar procedimentos, podem pensar e agir em conjunto. Consequentemente, aquela fuga nos torna cúmplices de crimes políticos.
No caso brasileiro, Barbosa (2009) diz que as reformas econômicas dos anos noventa associaram-se às heranças históricas para gerar uma sociedade onde a desigualdade passou a ser cada vez mais naturalizada, enquanto o individualismo tende a corroer as possibilidades de transformação coletiva.
Dentro desse contexto de busca de novas alternativas para a sociedade em meio a uma crise ambiental vem surgindo o ecossocialismo que, segundo Löwy (2009), é “uma corrente de pensamento e de ação que se reclama ao mesmo tempo da defesa ecológica do meio ambiente e da luta por uma alternativa socialista. Isso porque a lógica do mercado e do lucro capitalistas conduz à destruição dos equilíbrios naturais, com conseqüências catastróficas para a humanidade. Esta afirmação pode ser constatada nos fatos acima elencados.
O fundamentos do ecossocialismo encontram-se expressos em dois manifestos: o Manifesto Ecossocialista Internacional, assinados por Joel Kovel e Michael Löwy, datado de setembro de 2001 e disponível em www.ecossocialistas.org.br , onde os autores afirmam que o capital reduz a maioria das pessoas a mero reservatório de mão-de-obra, descartando aqueles considerados inúteis ao mesmo tempo que mina a integridade das comunidades por meio de uma cultura de massas global de consumismo e despolitização; já no 2º Manifesto Ecossocialista (Declaração Ecossocialista de Belém), também disponível na página citada, datada de janeiro de 2009 e assinada por Michael Löwy, Joel Kovel e Ian Angus, os autores enfatizam que as tentativas capitalistas de resolver a crise ecológica fracassaram e que somente uma mudança profunda na própria natureza da civilização pode salvar a humanidade das conseqüências das mudanças climáticas. Assim, o ecossocialismo propõe a substituição dos combustíveis fósseis por fontes limpas de energia; o transporte público gratuito e eficiente; a adoção de uma arquitetura verde sustentável;a produção e distribuição de alimentos, garantindo a segurança alimentar, aliado à criação de agroecossistemas sustentáveis e ao trabalho de renovação da fertilidade do solo.
O ecossocialismo pode vir a ser um caminho, entretanto é necessário superar vários paradigmas, uma vez que a cultura, o sistema de produção capitalista, a sociedade, o pensamento, não mudam de uma hora para outra.


BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Solange. Como pensa e vive um assassino. Revista ÉPOCA nº 591, 14.set.2009, p. 72-82.

BARBOSA, Alexandre de Freitas. Os socialistas e o desafio do desenvolvimento brasileiro. Texto de referência, módulo IV, Curso de Formação, Capacitação e Atualização Política, Escola de Formação Política Miguel Arraes.

BATISTA, Gabriela Barbosa. Fórum Social Mundial e Ecossocialismo. Disponível em: http://juventudedeterrazul.blogspot.com/2009/03/forum-social-mundial-e-o-ecossocialismo.html Acesso em: 16.set.2009.

CRAVEIRO, Rodrigo. Catástrofe humanitária: fome já castiga mais de 1 bilhão. Jornal CORREIO BRAZILIENSE, edição de 17.set.2009. Disponível em: http://www2.correiobraziliense.com.br/cbonline/mundo/pri_mun_95.htm Acesso em: 17.set.2009.

HALL, Bem. França acrescenta felicidade à conta do PIB. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 15.set.2009, Caderno Dinheiro, p. B12.

JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 2008.

LÖWY, Michael. O que é o ecossocialismo. Disponível em: http://www.democraciasocialista.org.br. Acesso em: 14.set.2009.

MUCHAIL, Salma Tannus. A produção da verdade. Revista CIÊNCIA & VIDA, Filosofia Especial nº 8, ano II, p. 6-11.

Revista VEJA, Especial Amazônia, ano 42, nº 2.130, set.2009, p. 16-17.

VIALLI, Andrea. Seqüestro de carbono chega à agricultura. Caderno de Economia. Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, Edição de 16.set.2009. Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090916/not_imp435635,0.php.
Acesso em: 17.set.2009.

www.ecossocialistas.org.br

quinta-feira, setembro 17, 2009

DECLARAÇÃO ECOSSOCIALISTA DE BELÉM (2º MANIFESTO ECOSSOCIALISTA)

Comitê de Redação: Michael Lowy e Joel Kovel e Ian Angus (janeiro 2009)

"El mundo tiene fiebre por el cambio climático y la enfermedad se llama modelo de desarrollo capitalista" — Evo Morales, presidente da Bolívia, Setembro 2007

A Escolha da Humanidade

A humanidade enfrenta hoje uma escolha extrema: ecossocialismo ou barbárie.

Não precisamos de mais provas da natureza bárbara do capital, este sistema parasita que explora a humanidade e a natureza. Seu único motor é o imperativo rumo ao lucro e logo a necessidade de crescimento constante. Ele cria produtos desnecessários de maneira dispendiosa, drenando os limitados recursos naturais e dando em retorno toxinas e poluição. Sob o capitalismo, a única medida de crescimento é quanto é vendido cada dia, cada semana, cada ano - incluindo vastas quantidades de produtos que são diretamente prejudiciais aos seres humanos e à natureza, produtos que não podem ser produzidos sem espalhar doenças, destruir as florestas que produzem o oxigênio que nós respiramos, devastar ecossistemas, e tratar nossa água e ar como se fossem esgotos do lixo industrial.

A ânsia do capitalismo pelo crescimento existe em todos os níveis, desde a empresa individual até o sistema como um todo. A fome insaciável das corporações é facilitada pela expansão imperialista na busca para ter cada vez mais acessos aos recursos naturais, mão-de-obra barata e novos mercados. O capitalismo sempre foi ecologicamente destrutivo, mas em nossa atual existência estas agressões à foram se acelerando. Uma mudança quantitativa está dando lugar à transformação qualitativa, levando o mundo a um ponto limite, à beira do desastre. Um time crescente de pesquisadores científicos tem identificado muitas maneiras nas quais pequenos aumentos na temperatura poderiam desencadear efeitos incontroláveis - tais como o derretimento rápido da camada de gelo da Groelândia ou a liberação do gás metano enterrada no gelo e no fundo do oceano - que tornaria inevitável uma catastrófica mudança do clima.

Sem controle, o aquecimento global terá impactos catastróficos nas vidas humana, animal e vegetal. A produção das colheitas se reduzirão drasticamente, gerando fome em larga escala. Centenas de milhões de pessoas serão deslocadas por secas em algumas áreas e por níveis elevados das marés em outras. Um clima caótico e imprevisível será a regra. Epidemias de malária, de cólera e mesmo de doenças mais mortais aniquilarão os mais pobres e os mais vulneráveis de cada sociedade.

O impacto da crise ecológica é mais devastador naqueles cujas vidas já foram ou vêm sendo destruídas pelo imperialismo inúmeras vezes na Ásia, África e América Latina, e os povos indígenas de todas as partes são especialmente vulneráveis. A destruição ambiental e as mudanças do clima constituem um ato de agressão dos ricos sobre os pobres.

A destruição ecológica, resultante da ânsia insaciável pelo lucro, não é uma característica acidental do capitalismo: está no DNA do sistema e não pode ser reprogramada. A produção orientada ao lucro considera somente um horizonte a curto prazo em suas decisões de investimento, e não consegue levar em consideração a saúde e a estabilidade a longo prazo do meio ambiente. A expansão econômica infinita é incompatível com ecossistemas finitos e frágeis, mas o sistema econômico capitalista não pode tolerar limites ao crescimento; sua necessidade constante de expansão subverte todos os limites que possam se impor em nome do "desenvolvimento sustentável." Assim o sistema capitalista inerentemente instável não pode regular sua própria atividade, muito menos superar as crises causadas por seu crescimento caótico e parasítico, porque fazê-lo exigiria colocar limites em sua acumulação - uma opção inaceitável para um sistema predicado na regra: Crescer ou Morrer.

Se o capitalismo continuar a ser a ordem social dominante, o melhor que podemos esperar são condições climáticas insuportáveis, a intensificação das crises sociais e a propagação das formas mais bárbaras de poder, como a luta dos poderes imperialistas entre si e com o Sul global para controlarem os cada vez mais escassos recursos naturais no mundo.

No pior dos casos, a vida humana pode não sobreviver.

Estratégias Capitalistas para Mudança

Não faltam estratégias para lidar com a ruína ecológica, incluindo a crise do aquecimento global em conseqüência do aumento imprudente do dióxido de carbono atmosférico. A grande maioria destas estratégias compartilha uma característica comum: são planejados por e agem em nome do sistema global dominante, o capitalismo.

Não é surpreendente que o sistema global dominante que é responsável pela crise ecológica também estabelece os termos do debate sobre esta crise, uma vez que o capital comanda os meios de produção do conhecimento, tanto quanto aquele do dióxido de carbono atmosférico. Conformemente, seus políticos, burocratas, economistas e professores proferem uma gama infinita das propostas, todas variações do tema que o dano ecológico do mundo pode ser reparado sem o desbaratamento dos mecanismos do mercado e do sistema de acumulação que comanda a economia mundial.

Mas uma pessoa não pode servir a dois mestres, ou seja, neste caso, a integridade da terra e a rentabilidade do capitalismo. Um deve ser descartado, e a história deixa poucas dúvidas sobre as alianças da vasta maioria dos atores políticos. Temos toda a razão, portanto, de duvidar radicalmente das ações estabelecidas para medir a escalada da catástrofe ecológica.

E certamente, além de um verniz cosmético, as reformas dos últimos 35 anos foram uma falha monstruosa. Melhorias individuais acontecem naturalmente, contudo elas são inevitavelmente oprimidas e varridas pela expansão impiedosa do sistema e da natureza caótica de sua produção.

Um exemplo demonstra este fracasso: nos primeiros quatro anos do século XXI, as emissões globais anuais de carbono eram quase três vezes maiores daquelas da década dos 1990s, apesar do surgimento do Protocolo de Kyoto em 1997.

Kyoto emprega dois mecanismos: o do Sistema "Cap and Trade" , que fixa um limite máximo de emissões e cria um mercado de livre troca de títulos de direito de emissão de carbono, e projetos no Sul global -- os chamados "Mecanismos de Desenvolvimento Limpo" (MDLs) -- para compensar as emissões das nações industriais. Todos estes instrumentos dependem dos mecanismos de mercado, o que significa, primeiramente, que o carbono atmosférico se transforma diretamente em uma commodity, logo sob o controle dos mesmos interesses das classes que criaram o aquecimento global em primeiro lugar. Os poluidores não são compelidos a reduzir suas emissões do carbono mas na verdade têm carta branca para usar seu poder monetário para controlar o mercado de carbono para seus próprios fins, o que inclui a exploração devastadora para mais carbono. Tampouco há um limite à quantidade de créditos da emissão, que podem ser emitidos por governos coniventes.

Dado que a verificação e a avaliação dos resultados é quase impossível, o regime de Kyoto não só é incapaz incapaz de um controle das emissões, mas dá margem também a amplas oportunidades de evasão e fraudes de todos os tipos. Como o jornal Wall Street Journal escreveu em março de 2007, o comércio de emissões "daria lucro para algumas grandes corporações, mas não acredite por um minuto sequer que esta trapaça fará muito pelo aquecimento global."

As reuniões de Bali em 2007 abriram precedentes para futuros abusos ainda maiores. Bali evitou a menção explícita dos objetivos drásticos para a redução do carbono elaborada pelos melhores cientistas dos clima (90% até 2050); abandonou os povos do Sul global à mercê do capital, ao dar a jurisdição do processo ao Banco Mundial; e deixou ainda mais fácil a compensação da poluição do carbono.

Para afirmar e garantir o futuro da humanidade, uma transformação revolucionária é necessária, na qual todos os esforços particulares devem ser vistos na luz de uma luta maior contra o próprio capital. Esta luta maior não pode ser meramente negativa e anti-capitalista. Ela deve anunciar um tipo diferente de sociedade, e isto é ecossocialismo.

A Alternativa Ecossocialista

O movimento ecossocialista visa parar e inverter o processo desastroso de aquecimento global em particular e do ecocídio capitalista em geral, e construir uma alternativa prática e radical ao sistema capitalista. O Ecossocialismo situa-se em uma economia transformada fundada nos valores não-monetários de justiça social e de equilíbrio ecológico. Ele critica tanto a "ecologia capitalista mercado" e o socialismo produtivista, que ignoraram o equilíbrio e limites da terra. Ele redefine o trajeto e o objetivo do socialismo dentro de uma estrutura ecológica e democrática.

O Ecossocialismo envolve uma transformação social revolucionária, que implique a limitação do crescimento e a transformação das necessidades por uma mudança profunda dos critérios econômicos quantitativos para os qualitativos, com ênfase no valor de uso em vez do valor de troca.

Estes objetivos exigem a tomada de decisão democrática na esfera econômica, permitindo a sociedade de definir coletivamente seus objetivos do investimento e da produção, e a coletivização dos meios de produção. Somente a tomada de decisão e a posse coletiva da produção podem oferecer a perspectiva a longo prazo que é necessária para o equilíbrio e a sustentabilidade de nossos sistemas sociais e naturais.

Além da grande escala de intervenções valiosas propostas pelo "movimento dos movimentos," uma perspectiva singular e central está começando a ser discutida: que, para afirmar e sustentar nosso futuro da humanidade,

As tentativas capitalistas de resolver a crise ecológica falharam: somente uma mudança profunda na própria natureza da civilização pode salvar a humanidade das conseqüências catastróficas da mudança do clima.

A rejeição do produtivismo e a mudança dos critérios econômicos quantitativos para os qualitativos envolve um repensar da natureza e dos objetivos da produção e da atividade econômica em geral. As atividades humanas criativas, não-produtivas e reprodutivas essenciais, tais como tomar conta da casa, cuidado e educação das crianças e adultos, as artes, todos serão valores chaves em uma economia ecossocialista.

O ar puro e a água e o solo fértil, assim como o acesso universal a alimentos sem agrotóxicos e às fontes de energia renováveis, não-poluidoras, são direitos naturais e básicos do ser humano básico defendidos pelo ecossocialismo. Longe de ser "despótico," a tomada de decisões coletiva nos níveis locais, regionais, nacionais e internacionais ocasiona o exercício da sociedade de liberdade e responsabilidade comuns. Esta liberdade de decisão constitui uma libertação das "leis" econômicas alienantes do sistema capitalista orientadas ao crescimento.

Para evitar o aquecimento global e outros perigos que ameaçam a sobrevivência humana e ecológica, setores inteiros da indústria e a agricultura devem ser suprimidos, reduzidos ou reestruturados e outros devem ser desenvolvidos, fornecendo emprego para todos. Uma transformação tão radical é impossível sem o controle coletivo dos meios de produção e o planejamento democrático da produção e da troca. As decisões democráticas sobre o investimento e o desenvolvimento tecnológico devem substituir o controle das empresas capitalistas, acionistas e bancos, a fim de proporcionar um horizonte a longo prazo dos bens comuns da sociedade e da natureza.

Os elementos mais oprimidos da sociedade humana, os povos pobres e os indígenas, devem ter um papel central na revolução ecossocialista, a fim de revitalizar as tradições ecológicas sustentáveis e dar voz àqueles que o sistema capitalista não pode ouvir. Dado que os povos do sul global e os pobres são geralmente as primeiras vítimas da destruição capitalista, suas lutas e demandas ajudarão a definir os contornos da sociedade ecológica e sustentável economicamente a ser criada. Similarmente, a igualdade de gênero é integral ao ecossocialismo, e os movimentos de mulheres têm estado entre os grupos oponentes mais ativos da opressão capitalista. Outros agentes potenciais da mudança revolucionária do ecossocialismo existem em todas as sociedades.

Tal processo não pode começar sem uma transformação revolucionária das estruturas sociais e políticas baseadas no apoio ativo, pela maioria da população, de um programa do ecossocialista. A luta do trabalho - trabalhadores, fazendeiros, os sem-terra e desempregados - pela justiça social é inseparável da luta pela justiça ambiental. O capitalismo, explorador social e ecológico e poluidor, é o inimigo da natureza e do trabalho em igual medida.

O Ecossocialismo propõe transformações radicais:


no sistema energético, substituindo os combustíveis fósseis e biocombustíveis por fontes limpas energéticas com controle social: eólica, geotérmica, marítima, e, principalmente, solar;
no sistema de transporte, reduzindo drasticamente o uso de caminhões e de carros particulares, substituindo-os por transporte público grátis e eficiente;
nos padrões atuais de produção, consumo e construção, que são baseados no lixo, na obsolência inata, na competição e poluição, e produzir no lugar bens sustentáveis e recicláveis, e adotar a arquitetura verde sustentável;
na produção e distribuição de alimentos, ao defender a soberania alimentar local o máximo possível, eliminando o agronegócio industrial poluidor, criando agro-ecossistemas sustentáveis e trabalhando ativamente para renovar a fertilidade do solo.

Para teorizar e trabalhar para concretizar o objetivo de um socialismo verde não significa que não devemos lutar por reformas concretas e urgentes agora. Sem nenhuma ilusão acerca de um "capitalismo limpo," devemos tentar ganhar tempo e impor nos poderes - quer sejam governos, corporações, instituições internacionais - algumas mudanças elementares mas essenciais:


redução drástica e obrigatória da emissão de gases estufa;

desenvolvimento de fontes limpas de energia;
provisão de um sistema extenso de transporte público grátis;
substituição progressiva de caminhões por trens;

criação de programas de despoluição;

eliminação da energia nuclear e do orçamento bélico.

Estas, além de demandas similares, estão no coração da agenda do movimento pela Justiça Global e dos Fóruns Sociais Mundiais, que tem promovido, desde Seattle em 1999, a convergência de movimentos sociais e ambientais numa luta comum contra o sistema capitalista.

A devastação ecológica não será paralisada nas salas de conferências ou nas negociações de tratados: somente a ação de massa pode fazer a diferença. Os trabalhadores urbanos e rurais, os povos do Sul global e os povos indígenas de todo o mundo estão na vanguarda desta luta contra injustiça social e ambiental, combatendo as multinacionais exploradoras e poluidoras, o agronegócio químico venenoso e desregulado, as invasivas sementes geneticamente modificadas, e os biocombustíveis que agravam a crise alimentar. Nós devemos intensificar estes movimentos socio-ambientais e construir a solidariedade entre as mobilizações ecológicas anti-capitalistas no Norte e no Sul.

Esta Declaração Ecossocialista é uma chamada à ação. As elites governantes encasteladas são poderosas, mas o sistema capitalista se revela diariamente cada vez mais falido financeira e ideologicamente, incapaz de superar as crises econômicas, ecológicas, sociais, alimentares e as outras crises que ele gera. E as forças da oposição radical estão vivas e são vitais. Em todos os níveis, local, regional e internacional, nós estamos lutando para criar um sistema alternativo baseado na justiça social e ecológica.

Nós abaixo assinados, endossamos a análise e as perspectivas políticas esboçadas na Declaração Ecossocialista de Belém, e apoiamos o estabelecimento e a construção de uma Rede Ecossocialista Internacional.

Tradução: Beatriz Leandro

Fonte: www.ecossocialistas.org.br

sexta-feira, setembro 11, 2009

MANIFESTO ECOSSOCIALISTA INTERNACIONAL

O século XXI se inicia com uma nota catastrófica, com um grau sem precedentes de desastres ecológicos e uma ordem mundial caótica, cercada por terror e focos de guerras localizadas e desintegradoras, que se espalham como uma gangrena pelos grandes troncos do planeta África Central, Oriente Médio, América do Sul e do Norte , ecoando por todas as nações.

Na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social estão profundamente relacionados e deveriam ser vistos como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais. As primeiras derivam, de uma maneira geral, da industrialização massiva, que ultrapassou a capacidade da Terra absorver e conter a instabilidade ecológica. O segundo deriva da forma de imperialismo conhecida como globalização, com seus efeitos desintegradores sobre as sociedades que se colocam em seu caminho. Ainda, essas forças subjacentes são essencialmente diferentes aspectos do mesmo movimento, devendo ser identificadas como a dinâmica central que move o todo: a expansão do sistema capitalista mundial.

Rejeitamos todo tipo de eufemismos ou propaganda que suavizem a brutalidade do sistema: todo mascaramento de seus custos ecológicos, toda mistificação dos custos humanos sob os nomes de democracia e direitos humanos. Ao contrário, insistimos em enxergar o capital a partir daquilo que ele realmente fez.

Agindo sobre a natureza e seu equilíbrio ecológico, o sistema, com seu imperativo de expansão constante da lucratividade, expõe ecossistemas a poluentes desestabilizadores, fragmenta habitats que evoluíram milhões de anos de modo a permitir o surgimento de organismos, dilapida recursos, e reduz a vitalidade sensual da natureza às frias trocas necessárias à acumulação de capital.

Do lado da humanidade, com suas exigências de autodeterminação, comunidade e existência plena de sentido, o capital reduz a maioria das pessoas do mundo a mero reservatório de mão-de-obra, ao mesmo tempo em que descarta os considerados inúteis. O capital invadiu e minou a integridade das comunidades por meio de uma cultura de massas global de consumismo e despolitização. Ele expandiu as disparidades de riqueza e de poder em níveis sem precedentes na história. Trabalhou lado a lado com uma rede de Estados corruptos e subservientes, cujas elites locais, poupando o centro, executam o trabalho de repressão. O capital também colocou em funcionamento, sob a supervisão das potências ocidentais e da superpotência norte-americana, uma rede de organizações trans-estatais destinada a minar a autonomia da periferia, atando-a às suas dívidas enquanto mantém um enorme aparato militar que força a obediência ao centro capitalista.

Nós entendemos que o atual sistema capitalista não pode regular, muito menos superar, as crises que deflagrou. Ele não pode resolver a crise ecológica porque fazê-lo implica em colocar limites ao processo de acumulação uma opção inaceitável para um sistema baseado na regra “cresça ou morra!”. Tampouco ele pode resolver a crise posta pelo terror ou outras formas de rebelião violenta, porque fazê-lo significaria abandonar a lógica do império, impondo limites inaceitáveis ao crescimento e ao “estilo de vida” sustentado pelo império. Sua única opção é recorrer à força bruta, incrementando a alienação e semeando mais terrorismo e contra-terrorismo, gerando assim uma nova variante de fascismo.

Em suma, o sistema capitalista mundial está historicamente falido. Tornou-se um império incapaz de se adaptar, cujo gigantismo expõe sua fraqueza subjacente. O sistema capitalista mundial é, na linguagem da ecologia, profundamente insustentável e, para que haja futuro, deve ser fundamentalmente transformado ou substituído.

É dessa forma que retornamos à dura escolha apresentada por Rosa Luxemburgo: “Socialismo ou Barbárie!”, em que a face da última está impressa neste século que se inicia na forma de eco-catástrofe, terror e contra-terror e sua degeneração fascista.

Mas por que socialismo, por que reviver esta palavra aparentemente consignada ao lixo da história pelos equívocos de suas interpretações no século XX? Por uma única razão: embora castigada e não realizada, a noção de socialismo ainda permanece atual para a superação do capital. Se o capital deve ser superado, uma tarefa dada como urgente considerando a própria sobrevivência da civilização, o resultado será necessariamente“socialista”, pois esse é o termo que designa a passagem a uma sociedade pós-capitalista. Se dizemos que o capital é radicalmente insustentável e se degenera em barbárie, delineada acima, então estamos também dizendo que precisamos construir um “socialismo” capaz de superar as crises que o capital iniciou. E se os “socialismos” do passado falharam nisso, é nosso dever, se escolhemos um fim outro que não a barbárie, lutar por um socialismo que triunfe. Da mesma forma que a barbárie mudou desde os tempos em que Rosa Luxemburgo enunciou sua profética alternativa, também o nome e a realidade do “socialismo” devem ser adequados aos tempos atuais.

É por essas razões que escolhemos nomear nossa interpretação de “socialismo” como um ecossocialismo, e nos dedicar à sua realização.


Por que Ecossocialismo?

Entendemos o ecossocialismo não como negação, mas como realização dos socialismos da “primeira época” do século vinte, no contexto da crise ecológica. Como seus antecessores, o ecossocialismo se baseia na visão de que capital é trabalho passado reificado, e se fortalece a partir do livre desenvolvimento de todos os produtores, ou em outras palavras, a partir da não separação entre produtores e meios de produção. Entendemos que essa meta não teve sua implementação possível no socialismo da “primeira época”. As razões dessa impossibilidade são demasiadamente complexas para serem aqui rapidamente abordadas, cabendo, entretanto, mencionar os diversos efeitos do subdesenvolvimento no contexto de hostilidade por parte das potências capitalistas. Essa conjuntura teve efeitos nefastos sobre os socialismos existentes, principalmente no que ser refere à negação da democracia interna associada à apologia do produtivismo capitalista, o que conduziu ao colapso dessas sociedades e à ruína de seus ambientes naturais.

O ecossocialismo retém os objetivos emancipatórios do socialismo da “primeira época”, ao mesmo tempo em que rejeita tanto os objetivos reformistas da social-democracia quanto às estruturas produtivistas das variações burocráticas do socialismo. O ecossocialismo insiste em redefinir a trajetória e objetivo da produção socialista em um contexto ecológico. Ele o faz especificamente em relação aos “limites ao crescimento”, essencial para a sustentabilidade da sociedade. Isso sem, no entanto, impor escassez, sofrimento ou repressão à sociedade. O objetivo é a transformação das necessidades, uma profunda mudança de dimensão qualitativa, não quantitativa. Do ponto de vista da produção de mercadorias, isso se traduz em uma valorização dos valores de uso em detrimento dos valores de troca um projeto de relevância de longo prazo baseado na atividade econômica imediata.

A generalização da produção ecológica sob condições socialistas pode fornecer a base para superação das crises atuais. Uma sociedade de produtores livremente associados não cessa sua própria democratização. Ela deve insistir em libertar todos os seres humanos como seu objetivo e fundamento. Ela supera assim o impulso imperialista subjetiva e objetivamente. Ao realizar tal objetivo, essa sociedade luta para superar todas as formas de dominação, incluindo, especialmente, aquelas de gênero e raça. Ela supera as condições que conduzem a distorções fundamentalistas e suas manifestações terroristas. Em síntese, essa sociedade se coloca em harmonia ecológica com a natureza em um grau impensável sob as condições atuais. Um resultado prático dessas tendências poderia se expressar, por exemplo, no desaparecimento da dependência de combustíveis fósseis característica do capitalismo industrial , que, por sua vez, poderia fornecer a base material para o resgate das terras subjugadas pelo imperialismo do petróleo, ao mesmo tempo em que possibilitaria a contenção do aquecimento global e de outras aflições da crise ecológica.

Ninguém pode ler estas recomendações sem pensar primeiro em quantas questões práticas e teóricas elas suscitam e, segundo e mais desesperançosamente, em quão remotas elas são em relação à atual configuração do mundo, tanto no que se refere ao que está baseado nas instituições quanto no que está registrado nas consciências. Não precisamos elaborar estes pontos, os quais deveriam ser instantaneamente reconhecidos por todos. Mas insistimos que eles devem ser tomados na perspectiva adequada. Nosso projeto não é nem detalhar cada passo deste caminho nem se render ao adversário devido à preponderância do poder que ostenta. Nosso projeto consiste em desenvolver a lógica de uma suficiente e necessária transformação da atual ordem e começar a dar os passos intermediários em direção a esse objetivo. O fazemos para pensar mais profundamente nessas possibilidades e, ao mesmo tempo, iniciar o trabalho de reunir aqueles de idéias semelhantes. Se existe algum mérito nesses argumentos, então ele precisa servir para que práticas e visões semelhantes germinem de maneira coordenada em diversos pontos do globo. O ecossocialismo será universal e internacional, ou não será. As crises de nosso tempo podem e devem ser vistas como oportunidades revolucionárias, e como tal temos o dever de afirmálas e concretizá-las.


David Barkin, Arran Gare, Howie Hawkins, Joel Kovel, Richard Lichtman, Peter Linebaugh, Ariel Salleh, Walt Sheasby, Ahmet Tonak, Victor Wallis (Estados Unidos), Laurent Garrouste, Jean-Marie Harribey, Michael Löwy, Pierre Rousset, Bernard Teisseire (França), Charles-André Udry (Suiça), Cristobal Cervantes, José Tapia (Espanha), Renan Vega (Colômbia), Isabel Loureiro, Marcos Barbosa de Oliveira, Renata Menasche (Brasil).

quarta-feira, setembro 09, 2009

ZENBUDISMO NA VIDA E NO TRABALHO

Leonardo Boff


O zenbundismo pode significar uma fonte inspiradora para o paradigma ocidental em crise bem como para a vida cotidiana. Isso porque o zen não é uma teoria ou filosofia. É uma prática de vida que se inscreve na tradição das grandes sabedorias da humanidade. O zen pode ser vivido pelas mais diferentes pessoas, simples donas de casa, empresários e pessoas religiosas de diferentes credos.

O centro para o zenbudismo não está na razão, tão importante para a nossa cultura ocidental. Mas na consciência. Para nós a consciência é algo mental. Para o zenbudismo cada sentido corporal possui a sua consciência: a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Um sexto é a razão. Tudo se concentra em ativar com a maior atenção possível cada uma destas consciências, a partir das coisas do dia-a-dia. Possuir uma atitude zen é discernir cada nuance do verde, perceber cada ruido, sentir cada cheiro, aperceber-se de cada toque. E estar atento às perlambulações da razão no seu fluxo interminável.

Por isso, o zen se constrói sobre a concentração, a atenção, o cuidado e a inteireza em tudo aquilo que se faz. Por exemplo, expulsar um gato da poltrona pode ser zen; também libertar os chacorros do canil e deixá-lo correr pelo no jardim. Conta-se que um guerreiro samurai antes de uma batalha visitou um mestre zen e lhe perguntou: “que é o céu e o inferno”? O mestre respondeu: “para gente armada como você não perco nenhum minuto”. O samurai enfurecido tirou a espada e disse:”por tal senvergonhice poderia matá-lo agora mesmo”. E ai disse-lhe calmamente o mestre:”eis ai o inferno”. O samurai caiu em si com a calma do mestre, meteu a espada na bainha e foi embora. E o mestre lhe gritou atrás:”eis ai o céu.”

O que a atitude zen visa, é a completa integração da pessoa com a realidade que vive. Deparamo-nos no meio de difenças, compartimentando nossa vida. O zen busca o vazio. Mas esse vazio não é vazio. É o espaço livre no qual tudo pode se formar. Por isso não podemos ficar presos a isto e àquilo. Quando um discípulo perguntou ao mestre:”quem somos”? respondeu apontando simplemente para o universo: “somos tudo isso”. Você é a planta, a ávore, a montanha, a estrela, o inteiro universo. Quando nos concentramos totalmene em tais realidades, nos identificamos com elas. Mas isso só é possível se ficarmos vazios e permitirmos que as coisas nos tomem totalmente. O pequeno eu desaparece para surgir o eu profundo. Então somos um com o todo. Este caminho exige muita disciplina. Não é nada fácil ultrapassar as flutuações de cada uma das consciências e criar um centro unificador.

Há uma base cosmológica para a busca desta unidade originária. Hoje sabemos que todos os seres provém dos elementos físicoquímicos que se forjaram no coração das grandes estrelas vermelhas que depois explodiram. Todos estávamos um dia juntos naquele coração incandecente. Guardamos uma memória cósmica desta nossa ancestraidade.

Depois, sabemos também que possuimos o mesmo código genético de base presente em todos os demais seres vivos. Viemos de uma bactéria primordial surgida há 3,8 bilhões de anos. Formamos a única e sagrada comunidade de vida.

Ao buscar um centro unificador, o zen nos convida a fazer esta viagem interior. É excusado dizer que tudo isso vale para todos mas principalmente para mim.

Leonardo Boff é teólogo e autor de "Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito", Vozes 2009.

(Colaboração: Valéria Viana Labrea)

MUDEMOS A MENTALIDADE; E JÁ!

Paccelli José Maracci Zähler


O título do presente relato foi tomado emprestado do conto “Eficiência Militar (historieta chinesa)”, de autoria do célebre escritor Lima Barreto, do qual sou fã incondicional, publicado na Revista CARETA, Rio de Janeiro, em 9 de setembro de 1922.
No conto, Lima Barreto nos brinda com a história de Li-Huang-Pô, vice-rei da Província de Cantão, Império da China, e de Fu-Shi-Tô, general do exército a serviço do vice-reinado.
O vice-rei andava desanimado porque todas as medidas tomadas para melhorar a eficiência do exército encarregado de protegê-lo e à província haviam fracassado.
Foi então que, ao assistir o fiasco das manobras executadas pelo seu bem alimentado e equipado exército, recebeu a sugestão do comandante em chefe, o general Fu-Shi-Tô, de que os “defeitos” da tropa eram fáceis de remediar, pois bastava trocar o uniforme.
O vice-rei Li-Huang-Pô, após meditar algum tempo, sentenciou:
- Mudemos o uniforme; e já!
A historieta de Lima Barreto me reportou a um tema atual. Animados por um artigo de autoria do jornalista André Trigueiro, intitulado “A farra dos sacos plásticos”, escrito em 2003, algumas grandes redes de supermercados e governos estaduais, apoiados por organizações não-governamentais que atuam em Educação Ambiental, começam a se mobilizar para reduzir o uso do plástico.
A medida, embora tenha um impacto positivo na opinião pública, não resolve o problema da permanência do plástico por centenas de anos no meio ambiente porque outras “necessidades” são “criadas”.
Já se vê nos caixas das grandes redes de supermercados sacolas “ecológicas” à venda para colocar as mercadorias recém-compradas. Nas gôndolas, o preço dos sacos plásticos específicos para lixo anda pela hora da morte.
Em outras palavras, o supermercado deixa de fornecer o saco plástico com a sua marca, cujo valor está (e continuará) incluído no preço da mercadoria e ainda lucra com a venda das sacolas “ecológicas” e com os rolos de sacos plásticos exclusivos para lixo; e ainda sai a alardear sua “responsabilidade ambiental”, apoiada por governantes “politicamente corretos” que só se preocupam com o nosso voto nas próximas eleições.
Simplesmente está se trocando seis por meia-dúzia, isto é, deixaremos de usar a sacola plástica com a marca do supermercado e adquiriremos sacolas “ecológicas” e rolos de sacos plásticos para colocar o lixo.
Onde está a redução do uso do plástico? Não seria mais proveitoso acabarmos com o consumismo de bens inúteis? Não é melhor nos preocuparmos com a reciclagem das lâmpadas fluorescentes, das baterias de celulares, com as emissões de gases tóxicos dos carros, aviões, navios, caminhões e ônibus de transporte coletivo? Ou, quem sabe, acabar com a ligação entre a novidade tecnológica e o status social?
Assim, parafraseando Lima Barreto, ouso decretar:
- Mudemos a mentalidade; e já!